sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Obscena de tão lúcida! - Ainda sobre Hilda Hilst








Hilda Hilst


 “Eu desejo ficar uma excelente pornógrafa.” (Hilda Hilst em entrevista à TV Cultura)


   Obscena de tão lúcida, Hilda de Almeida Prado Hilst foi uma poeta, cronista, ficcionista e dramaturga nascida em Jaú, município do Estado de São Paulo. Hilda veio ao mundo no dia 21 de Abril 1930 e é, considerada pela crítica, uma das maiores autoras em Língua Portuguesa do século XX.
   Tendo sua escrita caracterizada pelo erotismo, libertação sexual feminina, misticismo e insanidade, a autora lançou, em 1950, seu primeiro livro chamado “Presságio”, quando ainda cursava Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Anos mais tarde, em 1962, Hilda vai morar na Fazenda São José, de propriedade de sua mãe onde constrói a Casa do Sol, lugar onde escreveu a maior parte de sua obra.
   Hilda escreveu por cerca de quarenta anos sem que tivesse, de fato, um grande reconhecimento. Foi quando em 1990 lança “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, livro ficcional polêmico que conta as aventuras sexuais de Lori, uma menina de 8 anos. Livro que, por muitos, foi chamado de LIXO. A intenção de Hilda, com esse livro, era de fato chocar o mundo literário, pois a autora dizia que escreveu sério durante muito tempo sem nenhum reconhecimento, então a partir daquele momento ela diria adeus a literatura séria e se jogaria na escrita obscena.
   A escrita de Hilda é consolidada como uma literatura pornográfica e grotesca, mas Hilda Hilst é muito mais do que isso. Feminista sem se dizer ser, Hilda rejeitava o título de poetisa pois dizia que esse nome remetia à fragilidade.
   O corpo físico de Hilda deixa o mundo em fevereiro de 2004, na cidade de Campinas. Ressalto que o que nos deixou foi o corpo físico, pois Hilda Hilst é eterna, uma entidade. Seu corpo nos deixou e ela, Hilda, entre ficção e poesia nos deixou uma vasta obra:

Poesia:
  • Presságio - SP: Revista dos Tribunais, 1950. (Ilustrações Darcy Penteado).
  • Balada de Alzira - SP: Edições Alarico, 1951. (Ilustrações de Clóvis Graciano).
  • Balada do festival - RJ: Jornal de Letras, 1955.
  • Roteiro do Silêncio - SP: Anhambi, 1959.
  • Trovas de muito amor para um amado senhor - SP: Anhambi, 1959 SP: Massao Ohno, 1961.
  • Ode fragmentária - SP: Anhambi, 1961.
  • Sete cantos do poeta para o anjo - SP: Massao Ohno, 1962. (Prêmio PEN Clube - S. Paulo) (Ilustrações de Wesley Duke Lee).
  • Poesia (1959/1967) - SP: Livraria  Sal, 1967.
  • Júbilo, memória, noviciado da paixão - SP: Massao Ohno, 1974.
  • Poesia (1959/1979) - SP: Quíron/INL, 1980. (Ilustração de Bastico).
  • Da Morte. Odes mínimas - SP: Massao Ohno, Roswitha Kempf, 1980. (Ilustrações da autora)
  • Cantares de perda e predileção - SP: Massao Ohno/M. Lídia Pires e Albuquerque Editores,1980 (Prêmio Jabuti/Câmara Brasileira do Livro. Prêmio Cassiano Ricardo/Clube de Poesia de São Paulo.)
  • Poemas malditos, gozosos e devotos - SP: Massao Ohno/Ismael Guarnelli Editores, 1984.
  • Sobre a tua grande face - SP: Massao Ohno, 1986.
  • Amavisse - SP: Massao Ohno, 1989.
  • Alcoólicas - SP: Maison de vins, 1990.
  • Do desejo - SP: Pontes, 1992
  • Bufólicas - SP: Massao Ohno, 1992. (Desenhos de Jaguar).
  • Cantares do sem nome e de partidas - SP: Massao Ohno, 1995.
  • Do amor - SP: Edith Arnhold/Massao Ohno, 1999.

Ficção:

  • Fluxo-Floema - SP: Perspectiva, 1970. Qadós - SP: Edart, 1973.
  • Ficções - SP: Quíron, 1977. (Prêmio APCA. Melhor livro do ano.)
  • Tu não te moves de ti - SP: Cultura, 1980.
  • A obscena senhora D - SP: Massao Ohno, 1982.
  • Com meus olhos de cão e outras novelas - SP: Brasiliense, 1986. (Ilustrações da autora).
  • O caderno rosa de Lori Lamby - SP: Massao Ohno, 1990. (Ilustrações de Millôr Fernandes).
  • Contos d'escárnio/Textos grotescos - SP: Siciliano, 1990.
  • Cartas de um sedutor - SP: Paulicéia, 1991.
  • Rútilo nada - Campinas: Pontes 1993. (Prêmio Jabuti/Câmara Brasileira do Livro.)
  • Estar sendo. Ter sido - SP: Nankin, 1997. (Ilustrações de Marcos Gabriel).
  • Cascos e carícias: crônicas reunidas (1992 / 1995) - SP: Nankin, 2000 Antologias Poéticas:
  • Do desejo - Campinas, Pontes, 1992.
  • Do amor - SP: Massao Ohno, 1999.


Participações em coletâneas:
  • "Agüenta coração". In: Flávio Moreira da Costa - Onze em campo e um bando de primeira - Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, pp. 39-40.
  • "Canto Terceiro, XI (Balada do Festival)". In: Milton de Godoy Campos - Antologia poética da Geração de 45 - São Paulo: Clube da poesia, 1966, pp.114-115.
  • "Rútilo nada". In: Renata Pallotini - Anthologie de la poésie brésilienne - Paris: Chandeigne, 1988, pp.373-381m, tradução de Isabel Meyrelles.
  • "Gestalt". In: Ítalo Moriconi - Os cem melhores contos brasileiros do século - Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pp. 332-333.
  • "Do desejo" (fragmentos), "Alcoólicas" (fragmentos). In: Ítalo Moriconi - Os cem melhores poemas brasileiros do século - Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pp.289-290, 293-295.
  • "Do desejo (poema XLIX)". In: José Neumanne Pinto - Os cem melhores poetas brasileiros do século - São Paulo, 2001. pp. 230.
  • "Poeti brasiliani contemporanei". Prefácio e seleção de Silvio Castro. Veneza - Centro Internazionale della Gráfica di Venezia, 1997, pp.64-75.


Em parceria:

  • Renina Katz: serigrafias.  Poema de Hilda Hilst - SP: Cesar, 1970.

Teatro :

  • A Possessa - 1967.
  • O rato no muro - 1967.
  • O visitante - 1968.
  • Auto da barca de Camiri - 1968.
  • O novo sistema - 1968.
  • As aves da noite - 1968.
  • O verdugo - 1969 (Prêmio Anchieta - Conselho Estadual de Cultura, 1970)
  • A morte do patriarca - 1969.
  • Teatro reunido (volume I) - 2000. (com exceção da peça "O verdugo", todas as obras são inéditas).


Abaixo deixo algumas poesias da grande Hilda Hilst.

"Aflição de ser eu e não ser outra.

Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra

E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.

Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra."



Amavisse
Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.


Tenta-me de novo

E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.



Árias Pequenas. Para Bandolim 

Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores

Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.



Passeio

De um exílio passado entre a montanha e a ilha
Vendo o não ser da rocha e a extensão da praia.
De um esperar contínuo de navios e quilhas
Revendo a morte e o nascimento de umas vagas.
De assim tocar as coisas minuciosa e lenta
E nem mesmo na dor chegar a compreendê-las.
De saber o cavalo na montanha. E reclusa
Traduzir a dimensão aérea do seu flanco.
De amar como quem morre o que se fez poeta
E entender tão pouco seu corpo sob a pedra.
E de ter visto um dia uma criança velha
Cantando uma canção, desesperando,
É que não sei de mim. Corpo de terra.

Bruta Aventura em Versos - Um filme sobre Ana Cristina Cesar

    No ano de 2011 é lançado "Bruta Aventuras em Versos", documentário que conta,  um pouco da história e escrita da apaixonante Ana Cristina Cesar. Através de depoimentos de amigos e admiradores, o documentário nos mostra particularidades da poeta e faz com que nos apaixonemos cada vez mais por ela e pela sua escrita. 






Ana Cristina Cesar

“Te apresento a mulher mais discreta do mundo: esta que não tem nenhum segredo.” 
(Noite Carioca, Ana Cristina Cesar)



   Geminiana, nascida no dia 02 de Junho de 1952, Ana Cristina Cruz César, mais conhecida como Ana Cristina Cesar ou Ana C., foi poeta, tradutora, crítica literária e professora. A história de Ana com a escrita começa antes mesmo de ela aprender a escrever. Com apenas seis anos, a mini-poeta já ditava poemas para que sua mãe escrevesse, mas foi na década de 70 que a literatura de Ana C. se consolidou na literatura brasileira, sendo um dos principais nomes da chamada “Geração Mimeógrafo”, um movimento literário que, para não se submeter às regras de censura para publicações na época, criou meios alternativos para produzir e vender seus livros. E foi assim, de forma independente, que a autora lançou seus dois primeiros livros: Cenas de Abril e Correspondência completa, ambos em 1979.

   A escrita de Ana permeia assuntos que vão desde relatos cotidianos até relatos que beiram a crise existencial num misto de ficção e autobiografia confessional que, segundo a poeta, é uma autobiografia “fingida”. Comumente, ao ler Ana Cristina Cesar, por causa da fluidez na leitura, imaginamos ser uma escrita tão fluida quanto a leitura, mas em uma entrevista a autora diz que, para ela, o processo de escrita é algo visceral e doloroso.
   Em 1983, no dia 29 de Outubro, Ana dá adeus à vida ao pular do oitavo andar do apartamento dos seus pais em Copacabana. Aos 31 anos a poeta deixa a vida e nos deixa um rico acervo de escritos, tão apaixonantes quanto a sua autora. Em 2016 Ana C. foi a homenageada da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty).

   Além dos livros já citados, Ana lançou, em vida: os livros de poesia Luvas de Pelica (1980), Ao teus pés (1982) e Inéditos e dispersos (1985); e a crítica: Literatura não é documento (1980). Como publicação póstuma, todas organizadas por Armando Freitas Filho, melhor amigo da autora temos: os livros de poesia Novas Seletas e Poética(2015), este último reúne toda a obra poética da autora; e o livro de críticas e ensaios Crítica e Tradução (1999).

Abaixo, deixo algumas poesias* de Ana Cristina Cesar. Deleitem-se!!! 

samba-canção
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi de graça,
pelo telefone – tai,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...


Tudo o que poderia ter sido e nunca foi.
As cartas anônimas que não chegaram.
As madrugadas de Santa Tereza.
Punhetas.
A motocicleta furiosa,
o romance realista, imenso, impossível.
A paixão.
Ler apaixonadamente.
Ter medo.
Conferir os tipos caligráficos.
Procurar na lista telefônica o nº irreal.
Varal.
Sinos sinas hábitos varados fica decretado de hoje em diante o início paraoficial do gran-festival solitário do anonimato.


soneto

Pergunto aqui se sou louca
Quem quem saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés para amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?


poema óbvio
Não sou idêntica a mim mesmo
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo
                                                                                            [ponto de vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante


fotografando

Hoje estas delícias do banal me lembram
quando eu te amava à distancia –
trote galope de dois cavalos pelo mato
abro o livro do dever muito depressa
sacudo as folhas do alto da cabeça
e cai um aviso, mania de segredamento
“naquele dia...”
Lampejei. 


*todos os poemas foram tirados do livro "Poética". 

sábado, 2 de novembro de 2019

Ainda sobre Adélia Prado!!!

    Entrevista lindíssima de Adélia Prado concedida ao Canal do Youtube "Assembléia de Minas Gerais" no ano de 2018. Na entrevista em questão, a poeta, no auge dos seus 82 anos fala sobre feminismo, religião, o momento atual (2018) da política brasileira e Literatura. Se esbaldem de Adélia Prado! 





Abraços! 

Adélia Prado

"Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: está à lei, não dos homens, mas de Deus"(Carlos Drummond de Andrade sobre Adélia Prado em um artigo publicado no Jornal do Brasil em 1975)



    Nascida no ano de 1935, na cidade de Divinópolis, Minas Gerais, Adélia Luzia Prado de Freitas, ou apenas Adélia Prado, é uma autora, professora,filósofa e contista que, em suas obras, aborda desde o cotidiano doméstico, até a sexualidade e o catolicismo.
    Adélia começou a escrever aos 15 anos, logo após a morte de sua mãe, mas foi em 1976, quando a autora enviou alguns manuscritos para Affonso Romano de Sant'Anna, que na época assinava uma coluna literária no Jornal do Brasil. Admirado com os escritos de Adélia, Affonso enviou esses poemas para Carlos Drummond de Andrade que, encantado, logo apoiou a publicação do livro pela editora Imago. Sendo assim, aos 41 anos Adélia dá a luz à "Bagagem", seu primeiro livro de poesia. Falando em Drummond, “Com licença poética”, livro que abre o livro da poeta, faz uma paródia do “Poema de Sete faces” do autor. No ano de 1978, Adélia Prado lança “Coração Disparado”, seu segundo livro de poesias que lhe rendeu um Prêmio Jabuti.
    Em 1994, após o lançamento de "O Homem da mão seca", a escrita de Adélia passou por um hiato, período chamado pela autora de "Silêncio Poético", durante 5 anos Adélia não publicou um conto se quer e só em 1999 ressurgiu com o lançamento de "Oráculos de Maio". Após isso, entre prosas e poesias, Adélia segue nos presenteando com os seus escritos. Seu último lançamento foi em 2018 com o livro "Filandras", publicado pela Record.
    Hoje em dia Adélia tem 83 anos e ainda vive em Divinópolis com a sua família.

Abaixo, deixo para vocês alguns poemas* da incrível Adélia Prado.



Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Momento
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.


Fragmento

Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou:
não vai ser diferente da noite.
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
à esquerda ou à direita
e mesmo assim anunciou paciente ao meio-dia:
algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda, 
um vento bom entra nessa janela.



Grande Desejo

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos, 
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz para cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que e vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado, 
pra chorar, chorar, e chorar, 
requintada e esquisita como uma dama. 



Ensinamento

Minha mãe achava estudo 
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, 
ela falou comigo:
'coitado, até essa hora no serviço pesado'.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.

Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.




* todos os poemas foram retirados do livro "Bagagem". 




   Abraços! 

2 anos após, a ERRATA!


    No ano de 1981, dois anos após a publicação do artigo, Ana Cristina Cesar publicou uma errata. Nesta, a autora expõe que teve contato com uma nova literatura de mulher, fazendo com que toda a discussão posterior, a priori, se tornasse anacrônica. Mas que nova escrita seria essa produzida por essas mulheres que fez com que a ensaísta e poeta mudasse de opinião?
    Bem, segundo a autora, nessa nova escrita as mulheres se propuseram a romper com todas as delimitações em que se encaixavam a escrita de mulheres, como uma forma “despoetizar”, neologismo utilizado pela autora. Além disso, era comum encontrar nessa nova produção, certo tom de militância feminista. Sendo assim, aquela poesia de outrora, feita por Cecília e Henriqueta, se tornaram exemplos antiquados e recalcados da posição da mulher.

"(…) Onde se lia flor, luar, delicadeza e fluidez, leia-se secura, rispidez,
violência sem papas na língua. Sobe à cena a moça livre de maus
costumes, a prostituta, a lésbica, a masturbação, a trepada, o orgasmo, o
palavrão, o protesto, a marginalidade. (…) uma proeza militante de troca
em que importam menos os poemas do que uma poética da nova "poesia
de mulher": a lama no terno branco, o soco na cara, o corpo a corpo com
a vida.” (Ana Cristina Cesar, 1979 apud Armando Freitas Filho, 1999)

    Como podemos ver no trecho, houve uma reviravolta nas temáticas abordadas pelas mulheres. Onde antes lia-se subjetividades, passou-se a ler uma verdade nua e crua. Acontece que até mesmo essa liberdade dos temas se tornou uma caixa, mesmo que apresente características totalmente opostas às apresentadas antes como “Escrita feminina”, havia novamente um recorte quase que preciso do lugar que deveria ser ocupado pela mulher na literatura.

“E está dado novamente o lugar preciso que a mulher tem de
ocupar para se reconhecer como mulher. Fechou-se o ponto
de reapreensão da literatura feminina. Voltamos ao ponto de
partida.” (Ana Cristina Cesar, 1979 apud Armando Freitas Filho,
1999)

    As produções literárias femininas despiram-se de pudores, mas mantiveram-se presas a uma caixa, como se tudo o que fugisse um pouco dessa caixa não fosse considerado como uma “Literatura de mulher”.
   Nos próximos posts apresentarei a vocês duas grandes autoras: Adélia Prado e Hilda Hilst. Além delas, falarei um pouco mais sobre Ana Cristina Cesar, saindo do lado ensaísta e apresentado o lado poeta da autora. Até a próxima!

Abraços!

Fonte: CESAR, Ana Cristina, 1952-1983. Crítica e Tradução/Ana Cristina Cesar;[prefácio Alice Sant’Anna]. – 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Disponível em: https://issuu.com/gabrielasobral1/docs/literatura_e_mulher_essa_palavra_de